-
Você se lembra da casa na árvore, Clotilde?
Mas
que casa na árvore é essa, que eu nunca pratiquei arborismo, cidadão?
-
E do balanço feito de pneu velho?
Não
é do meu tempo, não. Não criava dengue nesse pneu?
-
E o trem? Lembra do trem que passava aqui perto?
Que
trem? Só se for o Trem das Onze do Adoniran.
Começo
a pensar que essas pessoas que dizem me conhecer tão bem estejam se lembrando
das próprias infâncias ou das infâncias de outras pessoas. Infâncias das quais
eu não participei.
Quando
tento me lembrar de certas coisas tenho a sensação de ter subido numa montanha
muito alta e quando olho lá embaixo eu só consigo distinguir uns contornos da
paisagem.
Não
que as vivências não tenham importado, porém, eram muitas lembranças para
carregar por toda a vida e daí trouxe comigo, para o presente, só o que
importava.
E
só o que tenho certeza de que vivi.
-
Clotilde, você se lembra da boneca linda que eu te dei quando você era
pequenininha? Tão bonitinha, você era! Loirinha, de cabelos cacheadinhos!!!
-
Tia Olívia, eu nunca tive cabelo loiro cacheado. Meu cabelo foi liso, castanho,
desde que eu nasci.
-
De jeito nenhum! Você era loirinha, parecia um anjinho! Eu tenho foto! Tenho
foto prá te mostrar! E eu te dei uma boneca que comprei em Paris!
Vou
embora da casa da tia Olívia porque senão perco o ônibus. Passo dias tentando
me lembrar dessa boneca comprada em Paris.
Na
época em que eu era criança não tinha essa facilidade de fazer foto digital.
Foto era com máquina e máquina era muito cara. O filme que ia na máquina era
caro. Era preciso pensar muito antes de tirar uma foto. Meus pais demoraram
para tirar foto minha porque a dona da máquina era a tia Olívia: “Será que a
Clotilde não vai crescer e ficar mais bonitinha?... Deixa ela crescer que é
capaz de ficar melhor. Daí a gente tira foto.”
Mas
que boneca parisiense é essa que a tia Olívia me deu? Ligo para minha irmã:
- Ah!
Eu me lembro dessa boneca, Clotilde! Era linda! Com a carinha de biscuit, que era
coisa chique na época. Tinha um vestido lindo, parecido com o da Vivien Leigh
no Vento Levou! Tia Olívia tinha ciúmes dessa boneca! Foi pra você que ela deu?
Tia Olívia te amava tanto assim?
Gente,
mas que amor todo era esse que não me lembro!? E o que fiz com essa boneca?
De
tanto forçar a mente acabou surgindo lá do fundo uma imagem de uma menininha
loirinha, brincando alegremente com uma boneca deslumbrante, num cenário
bucólico.
Sim!
Eu me lembro do diabo da boneca! E daí sinto um alívio, vejo a mim mesma,
pequena, sorrindo! Eu era loira? Será?
Ligo
para tia Olívia: Tia, eu me lembro! Eu me lembro! Foi uma das maiores alegrias
de minha infância! Que bonita a boneca!
- Que
boneca?
-
Aquela boneca de Paris, tia! Eu me lembro da boneca!
-
Ah, tá! Sei! Então...achei a foto! Eu dei a boneca não foi prá você! Foi para a
sua prima, a Maria Eduarda.
É
verdade!... a tia Olívia sempre preferiu a Maria Eduarda. Uma chata, de cabelo
cacheadinho, loirinha, metida. A menina que eu via na lembrança era a Eduarda.
-
Eu dei a boneca pra Eduardinha e logo em seguida você derrubou a sua priminha
no chão. A Eduardinha quebrou o braço e a boneca! Francamente, Clotilde! Até
hoje você não se dá bem com a sua prima! Quanta inveja, hein? Justo ela que é
tão linda, meiga, inteligente, casou com um empresário de sucess...
A
Eduarda pode até ter se dado bem na vida, mas que ficou sem a boneca, ficou.
Ana Polessi
Muito bom, Ana. Gostei muito e dei risada. Parabéns.
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