segunda-feira, 25 de abril de 2016

O LEITE DA VACA PRETA - VERA LÚCIA De ANGELIS

Hugo corria pelo cômodo de pouca mobília que permitia maior espaço para o reflexo avantajado de sua sombra nas paredes.
Ele, certamente, não conheceu a história de Peter Pan, personagem criado por volta de 1911, pelo escocês James Matthew Barrie, o menino da Terra do Nunca que não queria crescer e deixou sua sombra para a garota Wendy cuidar.
No seu universo simples de vida na roça, tinha o privilégio da avó paterna, contadora de histórias que vivia na mesma casa de colonos que eles.  Por invalidez e cegueira viveu por muitos anos na cama, até o dia de falecer. Desconheço o repertório de histórias de minha bisavó Rosa, apenas lembro-me de minha mãe contando que adoravam ouvir suas narrativas que misturavam o português a um dialeto italiano. Mas não tenho informação sobre o conteúdo.
Talvez por efeito do consciente coletivo essa história tenha povoado o universo do irmão mais velho, Hugo, lá na fazenda de café Santa Rosa, em Sertãozinho – SP, onde viviam como colonos.
O fato é que ele sempre fora meio nervoso e brigava com a própria sombra, como diziam os irmãos, que sorriam para essa lembrança. “Muito trabalhador”, defendiam os irmãos, "mas muito zangado”. Quando iam para cidade com Hugo conduzindo o carrinho, se demorassem a subir ele brigava chamando-os de molengas e outras coisas mais. Se subiam depressa, para não irritá-lo, perguntava se iam tirar o pai da forca.
Por essas e outras que a mãe, Dona Duzolina, minha avó e madrinha, usou de uma mentira muito da criativa para acalmá-lo certa vez em que não havia leite para beber. A única vaquinha da família nem sempre tinha o que oferecer e o mercado ficava muito longe.
Quando ele bateu o pé que queria leite, a mãe não teve dúvidas: encheu uma xícara de café e ofereceu a ele dizendo que se tratava de leite da vaca preta, ao que ele aceitou, sem pestanejar, ingerindo com gosto todo o líquido.
Quando cresceu Hugo deixou de correr da sua sombra e não reclamou mais se faltava alguma coisa de beber ou comer, já que o que se planta para consumo próprio não é como prateleira de supermercado com toda sua variedade. O seu gênio, entretanto, não mudou muito. Porém, foi sempre o primeiro a reclamar quando a avó dizia que nunca esqueceria o que faziam por ela em sua condição que exigia trabalho dobrado da nora, e o carinho de todos. “Hei de pagar um dia por tudo” – repetia ela. Hugo ficava zangado e insistia que não queriam pagamento, pois faziam tudo por amor.
Depois que ela morreu, ele sonhou que a avó apareceu para ele com um bilhete de loteria na mão entregando a ele o número da sorte que mudaria a vida da família. Cheio de si e coerente no que acreditava, Hugo nem sequer olhou o bilhete, dizendo mais uma vez que não queriam a paga pelo que fizeram por ela.
Quando acordou contou o sonho para o pai que exclamou:
- Não acredito que você não pegou o bilhete? Nem olhou o número?– certamente blasfemando em italiano.
- Mas pai, defendeu-se Hugo, eu estava sonhando.
E quem é que consegue controlar o que sonha?
Pois nunca se saberá se a avó realmente voltou com o bilhete premiado para pagar o que pensava ser uma dívida com a família; ou se o subconsciente de Hugo repetiu no sonho a atitude honesta e amorosa de todos por ela.
O fato é que a família seguiu sua vida de trabalhadores, depois se mudou para a capital de São Paulo, onde os mercadinhos foram surgindo e o poder aquisitivo deles melhorando com o trabalho dos filhos. Hugo na fábrica de vidros Santa Marina, enfrentando os fornos que lhe judiaram a pele além do que o sol da roça já havia judiado. Outros nas Indústrias Francisco Mattarazzo que empregou muita gente na época.
Mesmo assim o pai fez uma horta deveras produtiva no quintal e dona Duzolina continuou trabalhando bastante para cuidar da família. Porém não precisou mais tirar leite de vaca preta para ludibriar seu filho Hugo que já saíra de Sertãozinho casado e com um filho nos braços.
Quantas pequenas mentiras não contam as mães no seu jogo de cintura para criar os filhos, não é verdade?
Criatividade a custa da necessidade. Quem sabe minha avó materna, que nem aprendeu a ler e a escrever, mas também adorava contar causos, teria se tornado uma escritora, caso sua vida tivesse tomado um rumo diferente e pudesse desenvolver sua imaginação.

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