quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

ANA POLESSI - FANTASIA

Fantasia

Um incômodo raio de Sol cutucava seus olhos, queimava-os, e ela os mantinha fechados para proteger-se da enxurrada de cores e sons que o dia arremessava sobre ela. Finalmente o Sol jogou sujo e fez-lhe cócegas na barriga e nos pés. Aqueles dois grandes olhos castanhos despertaram de chofre para a vida e a boca esticou-se ligeira, abrindo-se numa gargalhada sonora.
A menina sacudiu a cabeleira. Era um não acabar de cabelos. Saltou pela janela e atingiu a terra do quintal. Parou para ver um inseto, acocorou-se e quase enfiou o nariz no besourinho, que nem notava a presença daquela carinha gigantesca sobre ele. A face pálida continuou observando o inseto.
A cabeleira confundia-se tanto com o chão, com o mesmo tom marrom avermelhado, que uma semente de dente de leão que voava pouco acima da menina, levada pelo vento, gritou “terra à vistaaaa!” e mexeu-se ligeiramente, buscando aterrissar na cabeleira. E a nuvem de sementes que voava atrás dela, formada por essas pequeninas tolas que não sabem diferenciar o que é chão e o que é cabelo, seguiu a indicação.
As sementes encontraram pequenas gotas de água (porque a menina acabara de tomar banho), e com o calorzinho do sol, resolveram brotar instantaneamente, desburocratizando a natureza e saltando as fases chatas de desenvolvimento da planta. Cresceram entrelaçadas nos cabelos da menina e já desabrocharam.
Não era comum um dente de leão ter flores coloridas, mas essas sementes eram loucas e apareceram essas flores enormes azuis e vermelhas.
A menina deu um pulo e desatou a correr pelo quintal. Um quintal muito longo, sem fim, com árvores em pontos estratégicos. Ela desviou das mangas que caiam, gordas e perfumadas, e tropeçou num bando de formigas que tentava resolver se levava para casa as folhas da roseira próxima ou os fiapos de manga.
Havia, claro, um regato, que brotava de uma pedra debaixo da sombra de uma paineira, cheio de abelhas jataí buscando refresco.
E o céu era de um azul limpo, com nuvens que escondiam tons de arco-iris. Diante de tanta coisa linda para ver, ela nem sentia fome ou sede, porque havia muita coisa para fazer, por exemplo voar naquele céu azul. Que pena que não tinha um dragão ali...mas não é que apareceu um? Do nada, assim. Um dragão com escamas douradas, escorregadio feito um peixe, que não cuspia fogo, mas gelo. Então era assim que aparecia o granizo?
Começou a esfriar com todo aquele gelo caindo. Ela voltou ao chão e os pés descalços doeram ao encostarem no chão duro e frio.
As formigas correram de volta para casa. O dragão engoliu as árvores, os pássaros e as abelhas jataí.
Ela fechou os olhos com força, sentindo seus cabelos caírem com os dentes de leão esmaecidos, enroscados nas pontas.
Um incômodo raio de luz cutucava seus olhos, queimava-os, e ela os mantinha fechados para proteger-se da enxurrada de realidade que a noite lançava sobre ela. A menina estava sozinha na rua mais uma vez e a multidão cinza, cega e surda, deslocava-se ao seu lado, quase a pisoteá-la. Encolheu-se ao lado de um gato magro, tão abandonado quanto ela, que por pena e cortesia – porque todos os gatos são galantes – enrolou-se na menina como quem dá um abraço e fantasiou que podia curar os corações partidos dos seres humanos.


Ana Polessi

Nenhum comentário:

Postar um comentário