sábado, 14 de julho de 2018

Miguel Munhoz, meu avô - por José C. M. Navarro


Miguel Munhoz, meu avô

As águas do Mediterrâneo (ou já seriam do Atlântico?) juntavam-se outra vez e faziam desaparecer a trilha que o navio fazia.
Salgadas eram, como salgadas foram as lágrimas que o jovem encostado à amurada com abundância vertia.
Não tinha ideia de tempo passado ou da distância percorrida, sabia apenas, e apenas sentia a dor daquela discussão impensada, que o levou da cozinha à porta da casa; daí à rua; daí ao porto, daí ao navio e daí ao Mediterrâneo ou já seria o Atlântico?
Amainou-lhe o ímpeto, aflorou a razão. O que fizera estava feito, se bem ou se mal, não o sabia, mas antagonizavam-se o cérebro e o coração. O bem atiçava aquele, o mal a este afligia.
Deixara mãe e irmã chorosas em casa, consigo trazia seu próprio pranto a se mergulhar naquelas águas salgadas.
Cada segundo, sua cidade natal mais longe, cada momento, sua aventura mais próxima.
Miguel brigara em casa e saíra. Portas batidas, raivosos e duros passos, um porto à frente, um navio de partida.
Embarcara, sem rumo nem passagem, viveu clandestino até mais não poder e dentre tantas decisões certas e erradas, tomou mais uma, apresentou-se ao comandante do navio.
Do espanto à reprimenda, da decisão ao castigo, do convés à cozinha, passou a separar restos de comida e a lavar pratos. Era sua paga por seu ato inconsequente. Desceria no próximo porto e ao seu completo arbítrio o que fazer da sua aventura. Limpar restos e lavar pratos, mas por pouco tempo.
Graças ao seu atrevimento, sua ousadia, sua capacidade, logo deixou a cozinha e passou ao salão, servindo mesas e recebendo passageiros. Ao sobressair neste novo mister assegurou não só sua ida ao destino do navio mas, principalmente sua almejada volta ao porto inicial, não mais clandestino, mas efetivamente incorporado ao grupo de servidores do navio.
No arrependimento da ida, sonhava com  a volta.
Tantos dias no mar, Tantos dias em viagem, chega finalmente o navio em seu destino. E as ocorrências são as normais de todos os navios. Aportam, descarregam, desembarcam passageiros e lá vão os tripulantes e descobrir os segredos e mistérios que aquele porto esconde.
Miguel fez o que todos faziam e fizerem. A roupa cotidiana foi trocada por outra mais nova, comprada com os parcos recursos que sua atividade proporcionou e de alma limpa e revigorada foi conhecer o mundo.
No pensamento o propósito de descobrir o desconhecido, no coração a promessa da volta. Voltaria sim, entraria pela mesma porta que saíra e recomeçaria sua vida na cidade natal.
Mas foi andando. Estabelecimentos vários se lhe apareceram, uns mais elegantes outros nem tanto e um mundo novo se descortinava à sua frente. Palavras estranhas soavam-lhe aos ouvidos, embaraçavam-lhe os olhos, porém com sua perspicácia e vontade de aprender foi gradativamente tomando ciência do novo linguajar e entendendo o que cada palavra representava.
Demora-se o navio para zarpar, escasseiam-lhe seus recursos e ele se vê obrigado a buscar dentro daqueles restaurantes e bares uma forma de suprir tão preocupante falta.
O que não lhe foi difícil. Novamente sua audácia e perseverança os levaram à cozinha do restaurante, de inicio e ao salão principal depois. Tão pouco espaço de tempo, tão largo progresso.
O navio está completo pronto para zarpar, todos a bordo. Todos menos um, Miguel fica, Miguel ficou.
É mais um a servir no salão do restaurante e, pensamos que assim seria, se não fosse o nosso velho e considerado destino e trançar seus fios.
Explico melhor. Servia mesas, naturalmente, quando percebeu um aumentar de voz em inicio de discussão entre um de seus companheiros e um casal de clientes. Preocupou-se em ajudar e prestando atenção percebeu entre as vozes exaltadas palavras conhecidas, que o levaram de imediato à sua terra natal.
Aproximou-se, intermediou os dois lados e arranhando seu português iniciante conciliou com o casal de clientes em seu vistoso castelhano. Serenaram os ânimos. O atendente voltou ao seu trabalho e o casal passou a ser servido por Miguel. A conta foi alta, e alta foi também a ascensão do imigrante até o ponto do casal, notando sua quase juvenil beleza e austera eficácia o convidou para vôos mais altos e assim, com pouca mala e pouca cuia, vê-se o espanhol aventureiro desbravando São Paulo.
Conto a historia de um solitário imigrante, de nome Miguel Elias Munhoz, nascido em Almeria aos 18 de fevereiro de 1895 e falecido em São Paulo, aos 18 de junho de 1944, Miguel Munhoz, meu avô.

Nenhum comentário:

Postar um comentário