Miguel Munhoz, meu
avô
As águas do Mediterrâneo (ou
já seriam do Atlântico?) juntavam-se outra vez e faziam desaparecer a trilha
que o navio fazia.
Salgadas eram, como salgadas
foram as lágrimas que o jovem encostado à amurada com abundância vertia.
Não tinha ideia de tempo
passado ou da distância percorrida, sabia apenas, e apenas sentia a dor daquela
discussão impensada, que o levou da cozinha à porta da casa; daí à rua; daí ao
porto, daí ao navio e daí ao Mediterrâneo ou já seria o Atlântico?
Amainou-lhe o ímpeto, aflorou
a razão. O que fizera estava feito, se bem ou se mal, não o sabia, mas
antagonizavam-se o cérebro e o coração. O bem atiçava aquele, o mal a este
afligia.
Deixara mãe e irmã chorosas em
casa, consigo trazia seu próprio pranto a se mergulhar naquelas águas salgadas.
Cada segundo, sua cidade natal
mais longe, cada momento, sua aventura mais próxima.
Miguel brigara em casa e
saíra. Portas batidas, raivosos e duros passos, um porto à frente, um navio de
partida.
Embarcara, sem rumo nem passagem,
viveu clandestino até mais não poder e dentre tantas decisões certas e erradas,
tomou mais uma, apresentou-se ao comandante do navio.
Do espanto à reprimenda, da
decisão ao castigo, do convés à cozinha, passou a separar restos de comida e a
lavar pratos. Era sua paga por seu ato inconsequente. Desceria no próximo porto
e ao seu completo arbítrio o que fazer da sua aventura. Limpar restos e lavar
pratos, mas por pouco tempo.
Graças ao seu atrevimento, sua
ousadia, sua capacidade, logo deixou a cozinha e passou ao salão, servindo
mesas e recebendo passageiros. Ao sobressair neste novo mister assegurou não só
sua ida ao destino do navio mas, principalmente sua almejada volta ao porto
inicial, não mais clandestino, mas efetivamente incorporado ao grupo de servidores
do navio.
No arrependimento da ida,
sonhava com a volta.
Tantos dias no mar, Tantos
dias em viagem, chega finalmente o navio em seu destino. E as ocorrências são
as normais de todos os navios. Aportam, descarregam, desembarcam passageiros e
lá vão os tripulantes e descobrir os segredos e mistérios que aquele porto
esconde.
Miguel fez o que todos faziam
e fizerem. A roupa cotidiana foi trocada por outra mais nova, comprada com os
parcos recursos que sua atividade proporcionou e de alma limpa e revigorada foi
conhecer o mundo.
No pensamento o propósito de
descobrir o desconhecido, no coração a promessa da volta. Voltaria sim,
entraria pela mesma porta que saíra e recomeçaria sua vida na cidade natal.
Mas foi andando.
Estabelecimentos vários se lhe apareceram, uns mais elegantes outros nem tanto
e um mundo novo se descortinava à sua frente. Palavras estranhas soavam-lhe aos
ouvidos, embaraçavam-lhe os olhos, porém com sua perspicácia e vontade de
aprender foi gradativamente tomando ciência do novo linguajar e entendendo o
que cada palavra representava.
Demora-se o navio para zarpar,
escasseiam-lhe seus recursos e ele se vê obrigado a buscar dentro daqueles
restaurantes e bares uma forma de suprir tão preocupante falta.
O que não lhe foi difícil.
Novamente sua audácia e perseverança os levaram à cozinha do restaurante, de
inicio e ao salão principal depois. Tão pouco espaço de tempo, tão largo
progresso.
O navio está completo pronto
para zarpar, todos a bordo. Todos menos um, Miguel fica, Miguel ficou.
É mais um a servir no salão do
restaurante e, pensamos que assim seria, se não fosse o nosso velho e
considerado destino e trançar seus fios.
Explico melhor. Servia mesas,
naturalmente, quando percebeu um aumentar de voz em inicio de discussão entre
um de seus companheiros e um casal de clientes. Preocupou-se em ajudar e
prestando atenção percebeu entre as vozes exaltadas palavras conhecidas, que o
levaram de imediato à sua terra natal.
Aproximou-se, intermediou os
dois lados e arranhando seu português iniciante conciliou com o casal de
clientes em seu vistoso castelhano. Serenaram os ânimos. O atendente voltou ao
seu trabalho e o casal passou a ser servido por Miguel. A conta foi alta, e
alta foi também a ascensão do imigrante até o ponto do casal, notando sua quase
juvenil beleza e austera eficácia o convidou para vôos mais altos e assim, com
pouca mala e pouca cuia, vê-se o espanhol aventureiro desbravando São Paulo.
Conto a historia de um
solitário imigrante, de nome Miguel Elias Munhoz, nascido em Almeria aos 18 de
fevereiro de 1895 e falecido em São Paulo, aos 18 de junho de 1944, Miguel
Munhoz, meu avô.
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