quarta-feira, 8 de março de 2017

SEM FANTASIA - VERA LUCIA DE ANGELIS

Nenhuma fantasia me serve este ano.
De ironia, talvez, porque a alegria passa longe.
Não suportaria a ginga dos sorrisos que tiram férias da vida para desfilar na avenida, ou simplesmente curtir o carnaval pela TV.
Principalmente aqueles que têm muito menos motivos para comemorar do que eu.
Felizmente tenho recursos para fugir desse momento que me parece insano e sem sentido.
Talvez, se me fantasiasse de louco varrido, com a camisa de força arrastando pelo chão, imunda de poluição e purpurina que se misturam ao asfalto cansado dos pés e do peso dos carros alegóricos.
Mas quem disse que o chão se cansa, ou que os pés dos sambistas são menos felizes por causa da realidade?
Eu é que sou, vestindo a fantasia da consciência.
Talvez me vestisse de tolo para adiar por, um, dois, três ou quatro dias a minha experiência de vida. Mas não consigo. Não sou assim.
O batuque dos tambores não despertaria meu coração. A cuíca explodiria meus ouvidos atormentados. O corpo exuberante e o gingado das mulheres não excitariam minha sexualidade. As vozes dos sambistas e do povo em uníssono não fariam estremecer essa minha estrutura gelada e indiferente.
Felizmente posso fugir do país, ou isolar-me no meu retiro particular de classe média, equipado com home theater, TV por assinatura, diga-se de passagem, biblioteca, uma despensa farta de provisões e o freezer com tudo à mão para me alimentar, além da internet para pesquisar e viajar virtualmente.
Está decidido. Nem viagem, nem fantasia.
Este ano meu Carnaval é de internato, muita meditação e considerações político-sociais sobre esse famoso holliday que é considerado a alma do nosso país.
Os dias passam, tranquilos, sem um acorde que seja penetrando minha intimidade, durante os quatro dias.
Finalmente é quarta-feira de cinzas. Hora do almoço, a chave gira na porta de entrada de serviço. A voz arranhada dela invade o ambiente e a quaresma dos meus sentimentos.
É Maria com seu turbante de baiana esquecido na cabeça e a música da escola no gogó:
- Não me sai da cabeça a música, seu Feliciano. Este ano a “ Vira-Vira” vai ganhar.
Troca os sapatos por chinelo com alívio para as bolhas do samba e me dá aquele sorriso de “Bom Dia” e felicidade que não sei se um dia saberei sentir.

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