quarta-feira, 16 de maio de 2018

Mentira - Por José Carlos Munhoz Navarro


Mentira

Por José Carlos Munhoz Navarro


     Certo ou errado, verdade ou mentira, todos os dias ele se sentava à frente do espelho e via as mágoas da sua vida no seu rosto sulcado por rugas profundas e olhar distante.
    Aos poucos, um bigode amarelo aqui, uma sobrancelha espalhafatosa, uma bocarra, e, para completar um redondo e vermelho nariz de palhaço, desaparecia o José da Silva e estava em cena o Zeca Peruibe.
     Respeitável Publ..., o apresentador não conseguia concluir sua fala pois o palhaço surgia por traz do palco, tropeçando em seus sapatos, na bandinha, no mundo e se enroscava com o mestre de cerimônias levando-o ao chão e começava suas palhaçadas da sua noite no circo. E por quase uma hora, levava tombos reais, dava e recebia fantasiosas bofetadas, fazia caretas mil, ria e chorava – de verdade e de mentira -  até sair de cena, extenuado e gratificado, pois tinha feito aquela meia dúzia de crianças e respectivos pais, passarem momentos de alegria e descontração. De sexta a quarta, pois de quinta ia ao hospital da cidade para fazer seu número. 
     No hospital sua função era mais elevada. Por uma manhã inteira, às vezes por uma tarde inteira, às vezes por um dia inteiro, fazia aqueles jovens pacientes se esquecerem de injeções, soros, curativos e bandagens, de terapias e exames para se alegrarem, e mais, sorrirem, e mais, gargalharem com suas caretas e micagens.      E todas as crianças, para não dizer, enfermeiras e médicos tinham cada um o seu brilhante e berrante nariz vermelho e se juntavam aquele Zeca Peruibe, alegre e descontraído palhaço, alter ego do José da Silva, triste e solitário.
     Entrava nos quartos mostrando apenas o rosto e recebia em troca o grito feliz da criança que naquela hora, naquele dia a verdade dolorosa da sua vida sumia, deixando espaço para a verdadeira mentira que Zeca lhe contava e assim era, e assim foi.
     O palhaço chorava escondido, chorava sim, quando punha sua cabeça na porta e via a cama vazia, leito limpo e liso, lençóis arrumados, dizendo que aquele amiguinho não estava mais lá, não estava mais com a gente. Mas ele engolia sua verdade dolorosa e ia ao próximo quarto externar – não o que sentia, mas sim o que o pequenino na próxima cama dele esperava. E assim foi por tantos e tantos anos que o José da Silva um dia se imaginou como sendo a própria mentira, nomeando Zeca Peruibe como a absoluta verdade.
     Tanto é verdade que depois que ele se foi, muitos anos depois, o hospital colocou em destaque um pequeno retrato que indica a ala infantil, nele não está a austera e sisuda figura do José, mas sim, a feliz e deliciosa mentira que foi o Zeca Peruibe (ou teria sido, na essência, o inverso?).

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