Livros
Américo Cipriano de
Seixas, advogado oriundo de Coimbra, consagrado em Lisboa esticara-se em sua
poltrona com os pés apoiados na ultima gaveta da escrivaninha. Brincava com os
botões do seu colete, ruminava com o preto dos seus sapatos.
À sua frente a
estante de livros jurídicos e de todos os gêneros respaldavam seus quase
oitenta anos de vida e cinqüenta de lides e disputas judiciais; de teses e
afirmações; de assentimentos e negativas.
De idas e vindas ao
fórum, audiências com juízes, acordos nos corredores, ajustes nos gabinetes, um
processo que entra que sai; um que se ganha ou que se perde.
À sua frente a parede
forrada de livros jurídicos, mais do que emoldurarem o dia a dia; mais do que
revestirem a parede do escritório, eram e, principalmente são a retaguarda de
suas vitorias diárias e progresso profissional. Brincava com os botões de seu
colete, ruminava com o preto dos seus sapatos.
De
súbito levanta-se e vai aos livros.
Retira um ao acaso da área jurídica, folheia-o e o coloca na mesa de reuniões
até então completamente limpa e vazia. Caminha à direita da estante escolhe e
traz cinco ou seis e os acomoda ao lado do primeiro, no tampo da mesa. Dentre
os últimos trouxe um Saramago, um Fernando Pessoa, um Eça de Queiroz, um Camões,
entre outros. Ato contínuo da última gaveta da escrivaninha retira um calhamaço
de papeis, manuscritos uns, muitos digitados, datilografados outros e os coloca
junto aos livros. Volta à sua poltrona, estica-se outra vez e fica a ruminar
novamente, não mais com coletes e sapatos e sim com livros e a vida. Reflete.
“Estou cansado.
Talvez seja hora de parar e fazer com que todos os dias pareçam sábados e todas
as horas sejam as mesmas dez e dez, ou quaisquer outras que valham. Vou a
Cascais onde lá, a ouvir o mar e a saborear meu vinho preferido, possa passar
meus últimos dias, como se todos eles, sábado fossem e as horas sejam elas dez
e dez ou oito e quarenta, sem compromissos, nem relógios.
Tenho
meus livros jurídicos, minha retaguarda (ou vanguarda??) profissional e minha
evolução pessoal, deixo-os a quem deles precisar, os demais levo-os todos
comigo. Lá completo a estante e os terei
sempre à mão para quando quiser reviver e viajar novamente retomar as estórias e
poemas. Estes livros (como todos) são meus agentes de viagem, meus condutores.
Com eles sou senhor do tempo e do espaço.
Descubro
as profundezas do mar ou o vento nas alturas; junto a Holmes percorro os becos
e tenebrosas ruelas de Londres desvendando casos e prendendo criminosos. Vou ao
passado, volto duzentos anos atrás, trezentos, mil anos. Luto em todas as
guerras, avanço à Lua, a Marte à imensidão do infinito, Julio Verne me conduz e
eu o sigo. Vou das estepes russas às masmorras medievais. Salvo princesas,
encarcero vilões. Canto os versos de Pessoa e o inconformismo de Lorca. Aprendo
idiomas. Vou ao mundo, vou ao Brasil, convivo com Machado, Graciliano.
Descartes nos diz que a menor distancia entre dois pontos é uma reta. Digo eu
que a melhor distancia ao conhecimento eu tenho em meus livros. Sou um e sou
magistralmente todos. Sou o espadachim invencível, o filósofo imortalizado. Isso, vou a Cascais, levo meus livros, tenho a
vida inteira à minha frente, e quem sabe, pretensão por pretensão; sonho por
sonho, peque eu por excesso, tenha em meus papeis o meu livro e esteja lado a
lado com os maiores, nunca iguais a eles é claro, mas sendo, humildemente um
deles, por menor que seja, mas um deles.
Talvez
à minha morte haja a grande fogueira de sétimo dia, queimando os papeis e tudo
que seja julgado supérfluo pelos herdeiros ou talvez à minha morte haja não
mais papeis manuscritos, datilografados ou digitados, mas sim, um novo livro
numa estante de alguém. Quem sabe?”
Américo Cipriano de
Seixas, aposentado, oriundo de Lisboa, instalado em Cascais esticara-se em sua
cadeira de praia com os pés rabiscando desenhos na areia, bebericava em
pequenos goles seu vinho preferido, virara a ultima página do seu Livro do
Desassossego, quando o livro caiu em seu colo e ele sutilmente adormeceu.
José
C. M. Navarro
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